Folheada, a folha de um livro retoma
o lânguido e vegetal da folha folha,
e um livro se folheia ou se desfolha
como sob o vento a árvore que o doa;
folheada, a folha de um livro repete
fricativas e labiais de ventos antigos,
e nada finge vento em folha de árvore
melhor do que vento em folha de livro.
Todavia a folha, na árvore do livro,
mais do que imita o vento, profere-o:
a palavra nela urge a voz, que é vento,
ou ventania varrendo o podre a zero.
Silencioso: quer fechado ou aberto,
inclusive o que grita dentro; anónimo:
só expõe o lombo, posto na estante,
que apaga em pardo todos os lombos;
modesto: só se abre se alguém o abre,
e tanto o oposto do quadro na parede,
aberto a vida toda, quanto da música,
viva apenas enquanto voam suas redes.
Mas apesar disso e apesar de paciente
(deixa-se ler onde queiram), severo:
exige que lhe extraiam, o interroguem;
e jamais exala: fechado, mesmo aberto.
terça-feira, 30 de dezembro de 2014
#24 - PARA A FEIRA DO LIVRO, João Cabral de Melo Neto
sábado, 27 de dezembro de 2014
#23 - MONÓLOGO DA OLIVEIRA, José António Almeida
Sobrevivo com uma pinga de água.
Um olhar de quem passa dá e sobra
muitos meses, um sorriso me basta
para reverdecer por longos anos
-- a minha copa foi feita de sonho
e de coisas exactas e tão negras
como pequeno bago de azeitona.
Sinais minúsculos e trespassados
de luz na cerração densa da morte.
Vi romanos, e moiros, e judeus:
o par de mansos olhos do Cordeiro
no meu tronco perdura até ao fim.
Um olhar de quem passa dá e sobra
muitos meses, um sorriso me basta
para reverdecer por longos anos
-- a minha copa foi feita de sonho
e de coisas exactas e tão negras
como pequeno bago de azeitona.
Sinais minúsculos e trespassados
de luz na cerração densa da morte.
Vi romanos, e moiros, e judeus:
o par de mansos olhos do Cordeiro
no meu tronco perdura até ao fim.
segunda-feira, 15 de dezembro de 2014
#22 - "Horizonte cerrado, baixo muro", Dante Milano
Horizonte cerrado, baixo muro,
A névoa como uma montanha andando,
O céu molhado como mar escuro.
Por muito tempo ainda fiquei olhando
A terra transformada num monturo.
Por muito tempo ainda ficou ventando.
Cravei no espaço lívido o olhar duro
E vi a folha no ar gesticulando,
Ainda agarrada ao galho, antes do salto
No abismo a debater-se contra o assalto
Do vento que estremece o mundo, e então
Sumir-se em meio àquele sobressalto
Depois de muito sacudida no alto
E de muito arrastada pelo chão...
A névoa como uma montanha andando,
O céu molhado como mar escuro.
Por muito tempo ainda fiquei olhando
A terra transformada num monturo.
Por muito tempo ainda ficou ventando.
Cravei no espaço lívido o olhar duro
E vi a folha no ar gesticulando,
Ainda agarrada ao galho, antes do salto
No abismo a debater-se contra o assalto
Do vento que estremece o mundo, e então
Sumir-se em meio àquele sobressalto
Depois de muito sacudida no alto
E de muito arrastada pelo chão...
domingo, 7 de dezembro de 2014
#21 - RIMANCE (na forma de lhaneza popular), Alberto de Hutra
Debaixo daquela árvore
'stá um menino a brincar,
'steja sombra esteja sol,
nunca deixa de folgar.
E a árvore foi crescendo
foi crescendo para o ar...
e o menino foi crescendo
já não sabia folgar.
Debaixo daquela árvore
com ELA está a falar.
A árvore já é grande
e o menino vai casar.
Um dia lá muito ao longe
'stava o menino a pensar,
e quedou-se mudo e triste
por já não saber folgar.
Já passaram muitos anos
por cima do seu pensar.
Debaixo daquela árvore
'stá um velhinho a chorar...
-- Porque choras tu velhinho?
o que te faz soluçar?
-- Se eu estou já tão velhinho
porque não hei-de chorar?
Quando eu era pequenino
vinha para aqui folgar,
agora que sou velhinho
venho para aqui chorar.
Uma voz se ouviu então
que vinha ao alto do ar:
-- Só és velho e vais morrer
por ter 'squecido o folgar...
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
À sombra da linda árvore
uma cruz foram plantar,
com um letreiro que diz
cousas que fazem cismar:
O SABER A VIDA, MATA.
O NÃO-SABER, FAZ CRIAR.
A MORTE SÓ CRIA A VIDA
P'RA MORRER DEPOIS DE AMAR.
'stá um menino a brincar,
'steja sombra esteja sol,
nunca deixa de folgar.
E a árvore foi crescendo
foi crescendo para o ar...
e o menino foi crescendo
já não sabia folgar.
Debaixo daquela árvore
com ELA está a falar.
A árvore já é grande
e o menino vai casar.
Um dia lá muito ao longe
'stava o menino a pensar,
e quedou-se mudo e triste
por já não saber folgar.
Já passaram muitos anos
por cima do seu pensar.
Debaixo daquela árvore
'stá um velhinho a chorar...
-- Porque choras tu velhinho?
o que te faz soluçar?
-- Se eu estou já tão velhinho
porque não hei-de chorar?
Quando eu era pequenino
vinha para aqui folgar,
agora que sou velhinho
venho para aqui chorar.
Uma voz se ouviu então
que vinha ao alto do ar:
-- Só és velho e vais morrer
por ter 'squecido o folgar...
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
À sombra da linda árvore
uma cruz foram plantar,
com um letreiro que diz
cousas que fazem cismar:
O SABER A VIDA, MATA.
O NÃO-SABER, FAZ CRIAR.
A MORTE SÓ CRIA A VIDA
P'RA MORRER DEPOIS DE AMAR.
Subscrever:
Mensagens (Atom)