domingo, 12 de fevereiro de 2017

#29 - "Eu sabia por ela as estações", Helder Macedo

Eu sabia por ela as estações
os esquilos os corvos as gaivotas.
Chegada a primavera abria os nós
em flores precipitadas e carnudas
de longas redondezas tacteantes
que batiam no vidro da janela.
Não dava fruto a minha castanheira
e na verdade não era sequer minha
ou só seria porque nos olhámos
cada manhã por mais de trinta anos.
Mas dava flores e esquilos e gaivotas
verão outono corvos primavera
sem contabilidades biológicas
doutras fertilidades transmissíveis.
Dava flores como se desse versos
sem precisar por isso de escrevê-los
como os amantes se amam num só corpo
sem ver onde um começa e o outro acaba
aberta toda em lábios vaginais
com uterinos longos falos brancos.
Também este ano floriu no tempo certo.
Mas o inverno chegou em plenas maias.
Disseram que a raiz rachou ao meio
que o centro do seu tronco estava oco
não percebiam como tinha flores.
Cortaram membro a membro a minha árvore
ficou só a raiz e o seu vazio
e sobre o campo em volta a neve quente
das suas flores perplexas
impossíveis.

terça-feira, 27 de dezembro de 2016

#28 - ÁRVORES DO ALENTEJO, Florbela Espanca

Ao Prof. Guido Battelli

Horas mortas… Curvada aos pés do Monte
A planície é um brasido… e, torturadas,
As árvores sangrentas, revoltadas,
Gritam a Deus a bênção duma fonte!

E quando, manhã alta, o sol posponte
A oiro a giesta a arder, pelas estradas,
Esfíngicas, recortam desgrenhadas
Os trágicos perfis do horizonte!

Árvores! Corações, almas que choram,
Almas iguais à minha, almas que imploram
Em vão remédio para tanta mágoa!

Árvores! Não choreis! Olhai e vede:
-- Também ando a gritar, morta de sede,
Pedindo a Deus a minha gota de água!